sexta-feira, 27 de maio de 2011

Morte do último caçador

Morreu Norberto Lutke. Venceu-o o câncer. Nos últimos anos via-o por sobre o balcão de seu negócio ou junto dos tonéis de cachaça quando, esperando as visitas anuais de sedentos amigos paulistas, precisava repor o estoque da "mardita". Nessas ocasiões, em privado, relembrávamos tempos passados. Trocávamos notícias do Durival Lopes Pereira, de João Silva - farinheiro da Estrada Isaac -, Noé Moretti, Herculano Vicenzi e Celso Machado.
Ali na porta do engenho olhávamos a muralha da serra. E, sempre na minha garganta trancava um nó de pura saudade das noites de inverno naqueles costões. Nossa primeira expedição foi no início dos anos 70. O objetivo declarado era fazer levantamento e fotos da estrada do Monte Crista. O que juntou a turma foi isso e mais a oportunidade para caçar, beber, comer e rir.
Ao grupo agregamos meu motorista, Ademir Netzche. Arisco e medroso. Eu, Durival, João e Norberto (Moppi) além das mochilas abarrotadas de comida, tralha e cachaça, levávamos espingardas. A minha uma belga Bayard, calibre 12, dois canos, cinto com 32 cartuchos de metal e mais pólvora, espoletas, chumbo 3T e papel macio para recarga.
Passamos a primeira noite num platô junto do paredão de rocha. A janta foi arroz com linguiça. A conversa transitou por caçadas, casos de onças, de bugres apelidados de compadres, fantasmas dos jesusitas e o caso do imenso tesouro que estes padres, ao serem expulsos por Marques de Pombal, tinham emparedado em gruta daquela serra. Rochas e árvores suspeitas eram explodidas todos os anos por caçadores do tesouro. Crentes na riqueza fácil não economizavam em dinamite.
A estrada calçada com rochas brutas, ainda continua lá, mas naquele tempo assombrava pela qualidade do trabalho que subia toda a serra e depois desaparecia nas terras do planalto. Alguns registros antigos dão conta que estes velhos caminhos emendavam com a Estrada da Graciosa, no Paraná, e juntos faziam parte da antiga rede de comunicação indígena que ligava o Altântico ao Pacífico.
Todas essas histórias, mais a lenda da terra oca, do mistério do Cantagalo,dos diamantes voadores, dos tropeiros, dos federalistas, publiquei em textos em A Notícia, no jornal Extra e nos Diários Associados.
Mas as lembranças mais fortes são dos amigos, rindo, contando causos, preparando pequenas armadilhas - uns para os outros, ou na tocaia dos jacús, dos quatis, urús, jacupemas, tucanos, ouriços, tatus, cotias. Sinto o cheiro de pólvora, penas, couro e sangue. Carne assando, lenha molhada nas fogueiras, madrugadas orvalhadas, cobertores fedorentos. Nunca conseguimos um tigre. Porco e veado só uma vez.

Nossas vozes e nossa juventude ecoaram naquelas serras. Reverberavam nos grotões. Sumiram no passado. Hoje só lembrança. Pálidas como o Moppi na última vez que o vi feliz apenas por estar toureando o câncer. Agora se foi. Talvez vire numa daquelas luzes fugidias e fantasmagóricas que riscavam a serra. Um diamante voador que só é capturado por quem o consegue batizar. Fará companhia ao Noé. O primeiro do grupo a partir em maio de 1980. Mal conheceu meu filho, o seu neto. Sinto falta dele hoje, tanto quanto do Moppy. Preciso visitar Durival,João, Herculano e Celso. Antes que outro de nós se vá. Com pouco ou nenhum aviso.

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